É como um sonho acordado
Ideias tiradas de um filme e do livro que adapta.
A convite do Vítor Ribeiro, estive no Close-Up em Famalicão a apresentar “Eyes Wide Shut” - do qual roubei o título português para o meu programa de bandas sonoras, “De Olhos Bem Fechados”. Rever o filme em sala foi uma experiência avassaladora. Por causa do que ficou na minha cabeça depois da sessão (e também por me ter esquecido de dizer tanta coisa na dita apresentação), escrevi o que se segue - atenção spoilers:
Talvez já tenha passado tempo suficiente para que “Eyes Wide Shut” seja visto pelo que é, e não pelo fenómeno mediático que rodeou a sua estreia, com a junção da morte de Kubrick a seis dias de mostrar a última montagem e a popularidade do casal de actores-protagonistas.
Conta-se que, naquele final dos anos 90, muita gente terá ido ao engano. Esperavam um thriller erótico que aproveitasse a dinâmica entre o casal. Mas Kubrick quis outra coisa que, de certa maneira, também brinca com a nossa percepção daquelas figuras, actores de quem sabíamos (e sabemos?) a par e passo as andanças das suas vidas privadas.
Em “The Stanley Kubrick Archives”, um espantoso livro da Taschen que percorre todos os filmes (incluindo os não concretizados) do cineasta, lemos Rodney Hill a definir assim aquele que se tornou no canto de cisne daquela obra: um tratado complexo e ambíguo sobre fidelidade, desejo e os males necessários da decepção no matrimónio e na sociedade.
E é isso que ficou a ressoar ainda mais em mim nesta revisita ao filme: a ideia da decepção.
Na viagem de comboio para Famalicão, aproveitei para ler “A História de um Sonho”, a novela de Arthur Schnitzler que “Eyes Wide Shut” adapta. Consegui perceber o fascínio de Kubrick pelo texto, que descobriu nos anos 50 graças à segunda mulher, Ruth Sobotka. Tal como o filme, temos um matrimónio que vive um momento de crise, numa história sobre um casal aparentemente com “tudo no sítio”, mas que vive a sonhar, com o ciúme da outra parte, ou a temer o seu próprio ciúme.
(Será que Ruth estava a dar uma dica ao esposo?)
Kubrick, que começou o seu cinema com livros sem interesse literário (como ele próprio mencionou em entrevistas desses primórdios - anos 50 e inícios de 60 -, interessavam-lhe mais as ideias que os livros lhe podiam suscitar e, nessa altura, isso não se confundia com boa literatura), fechou-o com uma belíssima novela, cuja estrutura, forma e conteúdo ainda hoje nos conseguem arrebatar.
Disse Kubrick em 1960: É difícil encontrar um escritor que tenha compreendido a alma humana de uma forma tão verdadeira, e que influenciou a maneira como pensamos, agimos e somos realmente, com um ponto de vista ao mesmo tempo empático e cínico.
“Eyes Wide Shut” tem também essa mistura, e impressiona mais ainda por ter cenas quase tiradas a papel químico da novela. Mudou o tempo da narrativa (da Viena no mardi-gras de finais do século XIX para a Nova Iorque na época natalícia de finais do século XX), acrescentou uma personagem (Sydney Pollack) e algum crescendo de tensão detectivesca na última parte da narrativa, mas a história está lá toda. Vários pedaços de diálogos estão lá sem quaisquer mudanças.
Desde os anos 70 que quis adaptar a “Traumnovelle” de Schnitzler, mas os seus filmes acabaram por estar marcados por algumas das ideias da obra. Depois de “A Clockwork Orange”, chegou a propor ao autor do romance, Anthony Burgess, para escrever a adaptação - podemos tentar imaginar o que o homem que criou essa sátira diabólica, em que o livre-arbítrio tem um papel fundamental, faria com Schnitzler.
Voltando a Kubrick, desta vez em 1972 (quando foi anunciada pela primeira vez esta sua vontade de adaptar a novela): É um livro difícil de descrever - como todos os bons livros. Explora a ambivalência sexual de um casamento feliz, e tenta igualar a importância das fantasias e dos ‘e ses’ com a realidade. Todo o trabalho de Schnitzler é psicologicamente brilhante.
Mas voltando à decepção: depois do livro e do filme, mais me fica a impressão do interesse de Kubrick estar nessa ideia. Vários tipos de decepção: o medo da infidelidade de um para a outra e vice-versa, mas também os “e ses” que vão pairando na cabeça. São decepções duplas, porque têm a ver com a diminuição da intensidade da relação, mas também da impossibilidade de cumprir esse papel e, “last but not least”, de como um ciúme pode levar a uma traição quando não houve infidelidade da outra parte.
Depois de ficar desiludida pelo facto do marido a dar como garantida, Nicole Kidman conta a Tom Cruise a história do homem em que ela reparara, um marinheiro que a fascinou. Se ele quisesse, ela teria deixado tudo para trás por causa daquele encontro, mesmo que o resultado fosse apenas uma noite.
Isto despoleta em Cruise um crescendo de pensamentos intrusivos, que o filme nos vai dando conta por uma sequência a preto e branco em que ele imagina Kidman a fazer amor com o marinheiro. De cada vez que Kubrick recupera essa cena, parece-me haver qualquer coisa mais: na primeira ela está impassível. Quase nem reage aos avanços do amante. Mas vai ganhando mais intensidade e vontade sempre que Cruise é invadido por esse ciúme.
Daí começa uma noite que pode ter sido um sonho, no todo ou em parte. Talvez Cruise esteja a imaginar tudo, tão bêbado de ciúmes que ficou, sendo a ressaca essa dificuldade em distinguir o real da suposição. Ou então não: houve o beijo da mulher que confessou amá-lo, em casa do defunto; depois o encontro com a prostituta em que o casamento (e o amor pela mulher?) o impediu de concretizar o impulso; seguiu-se o reencontro com o pianista, a ida à loja de máscaras (e toda aquela bizarria está também no livro), a festa e o erro que levou a que tudo terminasse.
Depois, Cruise procura pela mulher que poderá ter-se sacrificado por ele. A culpa veio ao de cima. A curiosidade matou o gato. O aviso de Pollack antecede o reencontro do casal: Cruise chora descontroladamente ao ver a máscara em cima da sua almofada. Kidman vai saber tudo.
No fim, a(s) decepção(ões) transformam-se em entendimento. O desejo torna-se outro, não pelo desconhecido ou pelo desafio de uma aventura, mas pela pessoa que sempre esteve ao nosso lado.
Kubrick, conhecido pelo seu calculismo, controlando tudo ao milímetro, é por isso muitas vezes acusado de frieza. Mas neste, e noutros filmes, encontro até uma grande humanidade. Diz-se que poderá ter dado cabo do casamento entre as duas estrelas, com o seu método obsessivo em que a montanha foi ter com Maomé (levando a que toda a Greenwich Village fosse recriada em Pinewood, porque desde os 70 que Kubrick não saía do Reino Unido), marcado por 52 semanas consecutivas de filmagens e o cansaço de toda a equipa.
Mas o que está em “Eyes Wide Shut” é para se ver uma, e outra, e outra vez. As imagens já me assombravam, e mais ainda gostei delas agora com a revisita. Mesmo que Kubrick não tenha acompanhado a sua obra até à estreia, e mesmo que pudesse ter alterado mais coisas depois desta montagem final... há múltiplos motivos para que continuemos a ficar fascinados por este sonho - e a cada ano que passa o impacto aumenta. Já ninguém quer saber das circunstâncias do casamento real de Kidman e Cruise, mas as suas personagens aqui ficam connosco.
Cruise domina o filme, mas Kidman, que aparece muito menos, tem tanta ou mais intensidade que o actor. A cena final é prova disso, também uma boa “remontagem” do diálogo final do texto de Schnitzler.
- Não é a realidade de uma única noite, nem a de toda uma vida, que corresponde à verdade intrínseca de um ser humano.
- Nem sonho algum - suspirou ele calmamente - é inteiramente sonho.
(...)
- Agora estamos plenamente acordados - observou ela - por muito tempo.
“Para sempre”, quis ele acrescentar. Mas antes que articulasse uma palavra, ela colocou-lhe um dedo sobre os lábios e murmurou, como que para si própria:
- Nunca se deve averiguar o futuro.
(Tradução de Mafalda Silva)
Na verdade, “Eyes Wide Shut” fala de desejo e de um casal em oposição, mas acaba por ser mais sobre o amor que sobre a cisão entre ambos. Creio ser uma bela prova de amor que os “e ses” não passem disso, parte do imaginário de um e outro. Como se fossem necessários para a relação continuar a existir: ideias divertidas para ocupar o cérebro.
Kidman disse “eu podia ter largado tudo”. Não o fez, mas conta o que sentiu ao marido, para ele perceber de uma vez por todas que ela não é uma peça de mobília. Cruise podia ter feito amor com a prostituta, mas não conseguiu (e, no fim de contas, safou-se do HIV), e viveu todas aquelas aventuras mas... no fim conta tudo à mulher. Está arrependido e, não tendo feito nada factualmente, sabe que fez tudo. O desejo de um pelo outro é mais forte, e sem o dizer explicitamente, Kubrick termina o seu filme com romantismo. A materialização dos “e ses” é perigosa, e esse desconforto de ambos mostra como, afinal, o amor que sentem um pelo outro é evidente.
O conforto da vida em casal (aquele que Kubrick tentou encontrar naquele segundo casamento, como nos conta a recente biografia “Kubrick: an Odyssey”) que parece algo restabelecido no desfecho do filme (das melhores frases finais do cinema) tem de ser constantemente reafirmado.
Amanhã é outro dia, e pode ser que haja outros sonhos. Há que ficar sempre bem acordado.
Antes de irem embora…
Outras portas deste hotel metatextual:
Imperdoável é o podcast onde vou ver os filmes que já tinha visto. Devia haver episódio novo hoje, mas talvez sai só amanhã. Podem ouvir tudo nas plataformas de podcasts;
De Olhos Bem Fechados é o programa de bandas sonoras da Antena 1. Passa aos domingos às 23h e depois está na RTP Play. Domingo há conversa com Mário Barroso sobre o “Lavagante”. Todas as emissões estão aqui;
Pranchas e Balões é o podcast semanal sobre BD da Antena 1. Com o Luís Bernardino falei esta semana sobre sete livros. Podem ouvir tudo aqui;
Mortinhos por Sair de Casa é o roteiro diário de coisas para fazer que passa às 17h40 na rádio. Todas as emissões andam por aqui;
A Hora da Pop, podcast da Antena 1 dedicado à cultura popular, tem novo episódio na sexta. Na semana passada houve conversa com a Isilda Sanches sobre cinco séries. Todos os episódios estão aqui;
Este mês estou a editar o À Pala de Walsh. Mais aqui;
E se tiverem Letterboxd, tem dias em que passo por aqui.
O Close-Up continua até dia 18 em Famalicão. Se estiverem por lá, aproveitem.
Obrigado e bem hajam.


