Contratos a termo certo
O tão adiado regresso faz-se com uma série de notas sobre um pequeno filme existencialista.
Não é uma reviravolta inicial na narrativa o que me faz ficar agarrado a um filme, logo nos primeiros segundos. Muitas vezes é só um plano, um achado de montagem singular, que serve de gatilho para despertar o meu interesse. Ou a banda sonora.
“Murder By Contract” começa com uma sequência aparentemente banal, com o seu protagonista a arranjar-se, a olhar-se ao espelho antes do encontro decisivo com aquele que será o seu destino profissional. Em pano de fundo ouvimos um dos temas recorrentes da música de Perry Botkin, cujas notas de guitarra nos remetem logo para “The Third Man” e a sua atmosfera melancólica, de um fim dos tempos já anunciado mas com o qual já nos tivemos de habituar, enquanto aguardamos pela reconstrução das coisas e tentamos encontrar algum sentido no meio do caos.
Essa banda sonora dá parte do lado hipnótico, e cativante, do filme. Vince Edwards é o prestador de serviços (daqueles que não pagam imposto, mas que conseguem sempre trabalho - até deixarem de dar jeito às entidades empregadoras), do qual sabemos pouco e que, terminado o filme, ficamos não muito mais esclarecidos. Mas por outro lado, parece que soubemos demasiado. O homem parece metódico, mas sentimos que o tempo de espera até concretizar o contrato central da história é mais causado por um prazer do próprio no processo de modorra. Saberemos as suas opiniões sobre armas (e quanta actualidade têm), que ele analisa as pessoas e consegue sempre as informações que necessita, mas por outro lado, talvez aquela “carapaça” inescrutável não é mais do que isso, uma máscara para causar impressão nos outros.
O que mais fascina em “Murder By Contract” é que tinha tudo para ser um filme de rotina, uma curiosidade do seu tempo que, hoje, serviria apenas para encher buracos na programação de canais de cabo, ou para as colecções de todos os que apreciam rapar os fundos do tacho do cinema com uma ínfima associação ao noir. Mas não: tudo é especial neste filme sobre a espera para a concretização de um contrato - e é isso que mais sobressai, a maneira como montagem, interpretações e diálogos conseguem tornar aliciante, e deliciosa, uma permissa tão alienante e distante das convenções dos filmes criminais. E claro, não nos esqueçamos da banda sonora.
É evidente o baixo orçamento envolvido na produção (várias sequências simples, de duas personagens a falar fora de quatro paredes, foram feitas diante de filme projectado), mas também como esses constrangimentos orçamentais foram utilizados para arquitectar uma contenção eficaz da narrativa. Os dois homens que às tantas vão esperar o contratado, para o levarem ao encontro do desafio absoluto, servem para tornar ainda mais interessante aquele tipo, um aparente superman como lhe está sempre a chamar um desses capangas (uma dupla de desajeitados, não metem medo a ninguém), mas talvez não. Não será o desespero a fonte da sua força? “Murder By Contract” acaba por ser mais um estudo de personagem(ns), não tanto as suas motivações para um caminho, mas para não terem escolhido qualquer outro.
Irving Lerner, experiente homem do cinema que dividiu o seu trabalho em várias frentes (e, de acordo com a wikipedia, também teve um período peculiar enquanto espião da URSS), assinou em 1958 um pequeno filme existencialista que parece anunciar, in a nutshell, toda a modernidade que estava quase a chegar. E talvez “Murder By Contract” tenha envelhecido melhor do que alguns exemplares da Nouvelle Vague ou dos Antonionis da vida. Corrijo: talvez seja, hoje, em 2025, mais forte por não ter perdido a modernidade, ou a força de nos surpreender.
Hoje fala-se mais deste pequeno achado de cinema pela enorme influência na obra de Scorsese, mas é mesmo mais do que uma curiosidade. E não terá sido o único realizador a sentir-se inspirado por “Murder By Contract”. Talvez Melville tenha vindo beber aqui para o seu “Le Samourai”, principalmente na coolness que perpassa a junção dos vários elementos (a música, novamente, a ter um papel fundamental). Mas no que Alain Delon era frio e calculista, Vince Edwards parece falsamente preciso e profissional.
Ele diz-nos logo ao início: quis entrar neste meio para conseguir pagar uma casa que, com o seu emprego normal, lhe levaria mais de duas décadas (talvez hoje não a conseguiria pagar de todo ao longo de uma vida). Os homicídios pagos a pronto como via para a concretização de uma conquista mundana: é por isso que o protagonista aceita entrar num mundo em que, ao mínimo deslize, terá a cabeça a prémio. 80 minutos (elaborados com tamanha precisão) depois, saberemos o resultado dessa escolha.
(vi o filme em bluray, numa edição da Indicator, mas ele está no YouTube em várias versões. Nenhuma, infelizmente, tão boa quanto a que eu vi. Mas esta tem legendas em PT-BR e noutros idiomas)
Uma nota extra
Estou finalmente de regresso a estas paragens. Não é que tenha sido esta a primeira tentativa de o fazer - os três rascunhos para textos aqui guardados são a prova disso. Mas alguma coisa impediu-me de os concretizar: ideias que, afinal, não estavam a resultar fora da minha cabeça / ou uma certa desmotivação para prosseguir / ou porque simplesmente já passo a minha vida a trabalhar ao computador e, por isso, chegar a casa e fazer o mesmo no meu tempo livre parece-me tão pouco sedutor. Percebi, depois de uma primeira série de artigos longos aqui redigidos, que o ritmo semanal e o excesso de elementos que pontuavam a receita, me fizeram cansar rapidamente da fórmula que criei. Por isso, a partir de agora, será assim: uma crónica apenas, sem aquelas partes adicionais, e na periodicidade do “quando me apetece” - e isto que leram foi motivado por um filme que vi hoje.
Já percebi, e aceitei, que funciono melhor assim: com o momento, e não com regras. Então daqui para a frente será assim como me poderão encontrar por aqui. Pensei inicialmente escrever este texto para o letterboxd, mas a frustração que sinto com essa plataforma pôs-me a pensar: “para quê?”. Faria mais sentido pôr isto noutro lado. Talvez nos próximos tempos aproveite para recuperar algumas coisas que escrevi por lá e que passaram debaixo do radar. A minha ideia para este substack também passa por aí: fazer disto um repositório de textos vários, alguns inéditos na internet, e outros que surgem de impulsos. Às vezes “apetece-me” escrever, e do nada começo a disparar qualquer coisa num papel ou no telemóvel. Pode ser que essas coisas do momento dêm origem a coisas aqui. Preciso de re-alimentar o meu gosto por escrever, e isso passa mais por aí (dar corda aos impulsos) do que a impor regras.
Espero que gostem deste À Beira do Abismo 2.0, mais descontraído para mim e, por isso (espero eu), mais divertido de fazer.
Antes de irem embora…
Outros poisos onde gosto de nidificar:
Imperdoável é o podcast onde vou ver os filmes que já tinha visto. A temporada foi interrompida, mas em breve há novos episódios. Podem ouvir tudo nas plataformas de podcasts;
De Olhos Bem Fechados é o programa de bandas sonoras da Antena 1. Passa aos domingos às 23h e depois está na RTP Play. Regressou há uma semana à rádio e no domingo chega ao 90.º episódio. Todos os já emitidos estão aqui;
Pranchas e Balões é o podcast semanal sobre BD da Antena 1. Já regressou esta semana com o Luís Bernardino e uma surpresa à volta de Vasco Granja e Hugo Pratt. Podem ouvir tudo aqui;
Mortinhos por Sair de Casa é o roteiro diário de coisas para fazer que passa às 17h40 na rádio. Também houve uma versão semanal ao sábado no Verão. Todas as emissões andam por aqui;
A Hora da Pop, podcast da Antena 1 dedicado à cultura popular, já regressou e o episódio de hoje é sobre o Bibliogamers, que está a acontecer nas bibliotecas de Lisboa. Todos os episódios estão aqui;
E entretanto uma novidade: sou um dos novos editores do À Pala de Walsh, e esta estreia fez-se numa troca de cartas com o Ricardo Vieira Lisboa à volta do novo “Naked Gun”. Podem ler aqui;
E se tiverem Letterboxd, ando por aqui.
Obrigado e bem hajam.


Acho que fazes bem em escrever newsletters mais pequenas. Também percebi que se mantivesse a intensidade do início seria impossível ser minimamente consistente.