Conhecida nesta morada
Uma curta vista há 13 anos e agora reencontrada. Depois há um ditador, Camilo e outras coisas.
A edição 2025 da MONSTRA, o Festival de Animação de Lisboa (que é, por esta altura, um certame que vai bem mais além da capital) começou ontem.
Tenho uma história longa com ela. A primeira vez que fui à MONSTRA foi em 2008, quando ainda havia sessões no Teatro Maria Matos. Era uma sessão de clássicos ingleses, e houve uma curta em particular que nunca me saiu da memória: chamava-se “The Village” e tenho fixada na cabeça a imagem de um padre a beber vinho às escondidas da comunidade. E houve outras curtas peculiares nessa sessão, uma delas sobre pessoas que tiveram experiências de contacto com extraterrestres.
A MONSTRA foi-se revelando, ao longo dos anos, um dos poucos festivais portugueses em que, de facto, posso descobrir coisas “completamente fora”. Mas também é o espaço onde pude falar com alguns nomes maiores do mundo da animação (particularmente felizes foram os encontros com os senhores Aardman, Nick Park e Peter Lord, em edições diferentes).
Daí que, antes de continuar, recomendo que espreitem a programação da MONSTRA e deixem-se levar pelas muitíssimas (e variadíssimas) propostas. A partir de segunda-feira lá estarei a acompanhar as competições (de hoje a domingo estarei no LouriBD, o festival de banda desenhada da Lourinhã, a ser o anfitrião de serviço). E sempre pronto a descobrir novos olhares, animações que desafiam os nossos sentidos e preconceitos, mas também filmes encantadores e divertidos para toda a família. Cabe tudo no espantoso mundo da animação.
OK, agora permitam-me que recue até 2012.
Nessa altura eu estava no 11.º ano. Escola Secundária Rainha Dona Leonor, um dos poucos rapazes na vertente de Línguas e Humanidades - há aqui toda uma reflexão a fazer sobre os prémios para os melhores alunos, porque havia uma diferença grande entre o número de candidatos dos sexos feminino e masculino. Ou seja, não era muito difícil ser-se o melhor aluno, enquanto que do lado das raparigas eram “sete cães a um osso”… enfim, estou a divagar, voltemos ao que interessa.
Bom, estava no que antigamente se chamava “liceu” - e que se for apelidado como tal em 2025, há quem ache ridículo. O Rainha era uma das escolas parceiras da MONSTRA, tendo várias sessões para as turmas a acontecerem no auditório. Mas também ficaram encarregues de eleger três alunos para fazerem parte do “júri júnior” da Competição de Estudantes do festival. Ou seja, esta competição tinha dois júris, um de gente adulta responsável e com currículo na área da animação ou do cinema, e outro composto por alunos das várias escolas integradas na MONSTRA.
Eu fui um dos três alunos escolhidos para representar o Rainha nesse júri, acompanhado de dois colegas da vertente artística do 11.º ano da escola. Estavam mais quatro jovens connosco, com dois pelo menos a serem da António Arroio.
A experiência de integrar esta iniciativa deixou-me boas memórias que ainda hoje recupero com carinho. Fiz algumas boas amizades, vimos muitos filmes, jantámos sempre bem, e discutíamos apaixonadamente cada sessão de curtas. Tínhamos de dar um prémio à parte a uma curta portuguesa e outro à melhor curta internacional. Por vezes discordávamos em alguns filmes, mas não de uma forma tão intensa.
Quer dizer, excepto num caso.
O filme chama-se “Coast Warning”, realizado pela russa Aleksandra Shadrina. Já estávamos perto do fim do processo de ver todas as curtas da selecção da competição, portanto esta deve ter sido exibida na última sessão de todas.
Como disse, lembro-me de um ou outro filme suscitarem opiniões diferentes, mas nada do outro mundo. O que aconteceu com “Coast Warning” ainda foi mais peculiar: eu adorei esta curta. Foi mesmo, na altura, aquele que eu considerei o melhor filme de toda a competição. O único a que dei cinco estrelas no meu caderno onde dava pontuações e tirava notas sobre todas as curtas.
Mas assim que saímos da sessão (e aqui as memórias estão difusas), acho que já estávamos mesmo em cima da hora para escolher o filme vencedor. Partimos logo de seguida para a discussão. O que me recordo é de ter começado a tecer todos os elogios possíveis a “Coast Warning” e ter recebido esta resposta de um dos meus colegas:
“O quê? Esse filme é uma merda”.
Acho que foi a reacção mais efusiva em relação àquele filme. Nenhum dos meus colegas de júri compartilhava o meu amor por “Coast Warning”. Rapidamente morreu na conversa e continou-se o escrutínio por outras curtas.
Na altura isto foi um baque para mim. E nunca me esqueço disto (por mais que a minha memória possa ter amplificado o impacto do episódio, com o passar dos anos) quando vejo um filme de que não gosto. Pior do que ter uma sensação desagradável por uma obra, é que ela não nos leve a mais nada do que meia dúzia de palavras e a um rápido esquecimento.
Socorro-me do arquivo do site do festival para me relembrar das distinções que acabámos por atribuir: uma Menção Honrosa a um filme assinado por cinco realizadores chamado "One More Time", o prémio de Melhor Filme de Estudantes Português a "Camera Obscura" de Marta Maia, e o prémio de Melhor Filme de Estudantes Internacional a "Promises", da japonesa Aki Kono.
Dos três, só tenho vagas recordações deste último. Os restantes membros do júri, salvo erro todos estudantes de Artes, quiseram prezar a técnica mais inovadora na sua avaliação. “Promises” era interessante nesse aspecto, mas não mais do que isso. Estava longe de ser um dos meus preferidos do festival. Mas foi o filme que nos permitiu chegar a um consenso.
E no entanto, passaram os anos e nunca me esqueci daquela curta de 7 minutos chamada “Coast Warning”.
Então… hoje decidi voltar àquela curta. Está no YouTube.
Tinha os maiores receios de revê-la. Já vivi o tempo suficiente para haver filmes “adultos” que vi há mais de quinze anos, que me marcaram muitíssimo e que, revendo agora, têm menos impacto. Mas há imagens que ficam connosco sem percebermos bem porquê. E à medida que voltava a ver estas imagens, percebia como elas sempre estiveram na minha cabeça desde 2012.
Acho que, naquela altura, os meus colegas detestaram a simplicidade e romantismo da animação. Eu já era, em 2012, um lamechas incurável, e acredito que, talvez, vocês vejam este filme e fiquem mais a pender para o lado do resto do júri do que do meu.
Mas a verdade é que voltei a adorar “Coast Warning”.
Continuo a achar que é uma belíssima curta história de amor e tentativa(s) de comunicabilidade, com uma animação tocante e espantosa, isto se tivermos em conta que foi um trabalho estudantil. A sensibilidade da sua execução voltou a comover-me como em 2012.
Temos uma menina que envia cartas para si própria, para que o carteiro passe sempre por ali. E em dias de temporal como têm sido os últimos (pelo menos aqui por Lisboa), rever estas imagens ainda fez mais sentido. É uma pequeníssima jóia animada.
(por falar no estado do tempo, mais um aparte: no dia 19 fui jantar a casa dos meus pais. A tempestade que se notava pela janela quase perto da uma da manhã, quase com um rio a formar-se pela rua e com coisas a voarem, levou-me a fazer algo que já não acontecia há quase 4 anos, quando saí daquela casa: dormi no meu antigo quarto. Foi estranhíssima aquela sensação: aquela nunca deixou de ser, na verdade, “a minha casa”, mas senti-me deslocado porque já não vivo ali diariamente. Mas dormi bem.)
A cada dia que passa, estou mais convencido que a memória é a melhor avaliadora dos filmes. Há obras que adorámos e que se desvaneceram completamente do nosso imaginário nem três meses depois de as termos visto. Há outras que nem nos fizeram sentir alguma coisa de especial e que, por alguma razão, acabamos por nos recordar com nitidez muitos anos depois.
Por mais méritos e competências que tenha uma obra de arte, é o seu valor emocional que me interessa, cada vez mais. Há filmes que consigo admirar de uma forma fria e passiva, como um robô a constatar a real qualidade técnica e artística de uma obra (aconteceu-me recentemente com as “Sombras de Antepassados Esquecidos” do Parajanov). Há outros filmes pelos quais ninguém daria dois tostões, mas que me dão muito mais do que seria de esperar.
O caso de “Coast Warning” é, para mim, o melhor dos dois mundos: a técnica e a emoção estão no sítio certo. Mas lá está, eu não fui aluno de Artes e nunca fui obrigado a ter de olhar para o cinema numa perspectiva puramente canónica e institucional, sobrepondo a inovação a todas as componentes que podemos achar importantes na avaliação de um filme.
Mas tenho pena que nenhum dos meus colegas tenha sentido o mesmo que eu, naquela sessão em 2012.
Fui investigar o paradeiro da realizadora e percebi que não assinou muitos mais filmes, mas desenvolveu uma intensa e interessantíssima carreira nas artes plásticas. Enviei-lhe mensagem e aguardo resposta. Talvez, se conseguir estabelecer contacto com ela, seria boa ideia conversarmos sobre “Coast Warning” e estas memórias. Pode ser, por isso, que volte a este tema um dia destes…
O que se recomenda…
… de filmes
Continuando a falar de filmes pelos quais ninguém dá qualquer credibilidade: há uns tempos a Cinemateca fez uma retrospectiva de Anatole Litvak, e no dia da abertura fiz dobradinha com “Sorry, Wrong Number” e “City For Conquest”. Este último caiu-me no goto com intensidade. É um melodrama “para fazer chorar as pedras da calçada”, com a tragédia elevada ao cubo e um sentimentalismo que muitos cínicos poderão considerar excessivo… mas que querem? Não consegui conter as lágrimas com o James Cagney, com a bela sinfonia que pontua o filme, com a Ann Sheridan e o Arthur Kennedy. Também ajuda ser uma produção da Warner, de longe o meu estúdio favorito no património hollywoodesco, com filmes sociais pontuados por um ritmo aliciante. E dou de barato que, além da experiência das imagens, houve o facto de ter sido projectado numa das mais belas cópias 35mm que vi na vida. Mas olhem, eu sou assim, deixem-me estar. Não quero ser amigo do Passos Coelho, por isso não há mal nenhum em ser piegas. Sei que o Dinis Machado também prezava “City For Conquest” - há um texto sobre ele na colectânea “O Lugar das Fitas”. Tenho de descobrir onde anda esse livro (ficou em casa dos meus pais)!
… de livros
Assinalaram-se os 200 anos de Camilo Castelo Branco no passado dia 16. Uma das experiências de leitura mais felizes que guardo do secundário foi a descoberta do “Amor de Perdição”, que comecei a ler cheio de preconceitos passados por familiares ou pessoas mais velhas, mas que devorei rapidamente com muito prazer. Estava à espera de uma história romântica em excesso, e levei com isso mas também com momentos de refinado humor e crítica de costumes. Só li mais dois ou três romances do autor desde então - falha minha, eu sei, e é um universo literário para explorar com mais afinco nos próximos tempos. Também gostei muito d’”O Retrato de Ricardina”, que li nesta edição da Europa-América. Há paixões assolapadas, ironia e crítica social no tempo das lutas liberais. Espero, em breve, ler outros romances como “O Judeu”, “Mistérios de Lisboa”, “Eusébio Macário”… etc.
… de discos
Não percebo nada de música, não sou especialista de coisa nenhuma e apenas uma pessoa constantemente curiosa e sempre de ouvidos bem abertos (só os Olhos é que às vezes estão Bem Fechados - *badum tss*). Mas gosto muito dos clássicos de jazz e continuo a descobrir pérolas surpreendentes. A mais recente foi “Brandenburg Gate: Revisited”, disco do quarteto de Dave Brubeck em que há uma revisitação de temas célebres do autor e outras delícias. Não me peçam para dizer qualquer coisa erudita sobre este disco. Só sei é que me acompanhou na escrita de alguns guiões esta semana e a sua escuta soube “pela vida”.
… de vídeos
O YouTube pode ser encarado como uma arca de incontáveis tesouros, como a bolsa infinitamente recheada de engenhocas do Doraemon. Hoje recomendo muito este documentário de 55 minutos sobre um dos meus filmes preferidos: “O Grande Ditador”, de Chaplin. Foi um dos meus primeiros DVDs e hoje tenho pena de me ter desfeito dele, em troca de uma caixa em bluray (com chapéu e tudo) editada pela A Contracorriente que reúne todas as longas do mestre… mas não todos os extras das anteriores edições desses filmes. Na do “Ditador” incluía-se este documentário, dos poucos que vi mais de uma vez, a acompanhar algumas revisitas que fiz ao filme. É um relato impressionante dos bastidores e das semelhanças entre “O Vagabundo e o Ditador”, como nos diz o título: Chaplin e Hitler nasceram com poucos dias de diferença e o segundo admirava o primeiro. Se não me falha a memória, neste documentário fala-se do facto do nazi ter visto pelo menos duas vezes “O Grande Ditador” e de ter ainda requisitado a cópia para uma terceira…
… de outras ligações
“Frank Sinatra Has a Cold” é um dos clássicos da escrita jornalística, e a Esquire disponibilizou o mítico texto de Gay Talese na íntegra aqui. Têm quase 60 anos estas linhas deliciosas, onde se inclui esta tirada: Sinatra with a cold is Picasso without paint, Ferrari without fuel—only worse.
Antes de irem embora…
Outras estações de serviço virtuais:
Imperdoável é o podcast onde vou ver os filmes que já tinha visto. Esta semana convidei o Hugo Gomes para falar de “Zulu”. Foi o mais perto de um imperdoável que consegui arranjar para ver com ele. Este e outros episódios estão nas plataformas de podcasts;
De Olhos Bem Fechados é o programa de bandas sonoras da Antena 1. Passa aos domingos às 23h e depois está na RTP Play. Há muita boa música para ouvir e está tudo aqui;
Pranchas e Balões é o podcast semanal sobre BD da Antena 1. Esta semana falei com o Filipe Duarte Pina, argumentista da série “Macho-Alfa” (editada pel’A Seita e a Comic Heart). Podem ouvir aqui;
Mortinhos por Sair de Casa é o roteiro diário de coisas para fazer que passa às 17h40 na rádio e depois anda por aqui;
E hoje n’A Hora da Pop, o podcast da Antena 1 dedicado à cultura popular, tem uma conversa com o Fernando Galrito e o Miguel Pires de Matos, programadores da MONSTRA. Às tantas falo dessa minha primeira experiência com o festival, e também de “Coast Warning”. Podem ouvir aqui;
E se tiverem Letterboxd, ando a importunar as pessoas por aqui.
E fico por aqui. Se virem “Coast Warning” digam-me o que acharam. Sem constrangimentos. Se odiaram, podem dizê-lo, mas não me insultem. Afinal, só vos roubei 7 minutos de vida com o seu visionamento. Aproveitem a Monstra, ou vejam filmes de animação. Há tanta coisa boa. Se estiverem pela Lourinhã neste fim de semana, espreitem o LouriBD. Senão, fujam do mau tempo e divirtam-se. Obrigado e bem hajam.
Não sei se daria 5 estrelas à curta, mas jamais diria que é uma merda.
Tens razão, a curta é mesmo encantadora. Adorei o nível de detalhe em pequenos pormenores, como o carteiro recuar quando chega a correr perto dela (talvez por timidez?) ou a menina a apanhar o cabelo e logo em seguida a soltá-lo (é um gesto muito próprio das mulheres quando estão ansiosas ou apaixonadas). E lembra-me muito o Sempé :)